O último relincho na carroça,
O carro atravessado na avenida
E o ciclista estirado, sem que eu possa
Cobrir seu corpo inerte e já sem vida.
Não mais irá o cavalo para a roça;
A motorista, em pânico e perdida,
Revê, talvez, seu carro, que destroça
O ciclista e a carroça envelhecida.
O cavalo e o ciclista vitimados.
Mas muitos motoristas, apressados,
Só vêem que a avenida está trancada,
Alheios à mulher, que sai do carro,
Se entrega à dor, às lágrimas e ao barro
E, em choque, diz aos mortos: não foi nada...
AQUÁRIO DE SERPENTES (Lena Ferreira)
Andei desconstruindo celas
abrindo portas onde não tinha parede
destecendo redes de entranhas
desmembrando peles de intrigas
descascando as dores das feridas
Andei ralando a alma em precipícios
que desde o início seduziam-me ao salto
auto-mato, morre a fome de um grito
seco e cego; não atino o volume certo
Andei atirando a esmo, atingindo galhos
grasnando em escolhas recolhidas pelo espaço
passando fome, comendo o pão que o diabo vomitou
não me rendi, não me entreguei, não me dosei
nunca mais me dosarei a quem não dosar de si
não em troca mas em troco; lucro farto e perto
Andei abrindo janelas em aquário de serpentes...
ARCANO 16 (Rosa Cardoso)
o vento brinca com a árvore na janela
e tua voz vem riscar a vidraça
é tão tarde
quando sussurras teus versos
em rimas surreais
que deslizam pelos meus sonhos
junto com umas lágrimas descabidas
é tão tarde
para riscar peles e vidraças
até os mortos sussurram
longas árias
em cadencias insanas
enquanto você chora
em rimas perfeitas
murmura histórias arcanas
versos
música
hosanas e teu corpo
é tão tarde
eu sussurro
os mortos mentem
em línguas mortas
enquanto a tua desliza
no céu da boca
segredos estelares
bobagens seculares
mentiras de vento e folha
que eu finjo não ver
nesse gozo esquecido
perdido entre as frinchas da noite
eu entendo
tudo, ou quase tudo,
de tudo que nunca entendi
meus olhos ardem
e te esquecem um pouco mais
fecho o livro sem pressa
guardo o poema junto aos meus
que dormem sozinhos
teus mortos sussurram
é tão tarde
AUTO CONDESCENDÊNCIAS (Izabel Lisboa)
ir além do cênico e
de bom grado
em meio à morte diuturna
beber a vida
como água[ardente]
como puta condescendente
embriagada
louca e indecente
abundando-se em riscos e risos
subvertendo-se
em delírios poéticos
bendizendo o sim...
[consequências do eu exilado
quando se aprende
que a morte é frígida]
AVESSO (Solange Mazzeto)
é a lambida do inferno
com suas
taras
e
decretos
com os dentes da frente
emparelhados
fazendo silvo
fazendo arte
fazendo birra
é a manipulação da gengiva
do grelo
na saliva
é o demônio esparramado
servindo vinho
bebendo pinga
CONFESSO... (Izabel Lisboa)
por aqui
o cio de sempre
cíclico
torrencial
incomensurável
tenso
teso
fatal...
O DEUS DA GUERRA (Betty Vidigal)
O deus da guerra sabe.
Sabe e se esquiva,
não como um deus guerreiro,
mas como uma pantera em carne viva.
O deus da guerra ouviu meus pesadelos
E sorriu, com a tolerância dos guerreiros
Que riem dessas coisas primitivas.
Desvencilhando-se da sede que exacerba,
Hábil na lança e no escudo,
Há de saber que na trégua cicatrizo,
Resisto,
Cresço
E não mudo.
DUZENTOS POR HORA (Solange Mazzeto)
câmbio em alta tecnologia
sistema de ponta
cruza a ponte controvérsia
da história da máquina
flecha, monte de Vênus
sexo na velocidade máxima
marcha a ré
espera
solta a primeira marcha
desce devagar
...
respira...
solta o freio
vai
ELE VEM (Solange Mazzeto)
é trapaça
o sono é vento
a tempestade é granito
em gole ele vem
na temperatura ideal
marcar
território
estampando na cara
o gosto maldito
do amanhã
horas batem, sinos rompem
no retrato a mancha
de suor escorre
lento exagero
flor perpétua
solamente
roxa
ESTILHAÇO (Dudu Oliveira)
Sou um e sou tantos
E dentre tantos
Em que me desmembro
Refletindo por todo canto
Sou cada caco
Do tanto que tento.
Sou um e sou tantos
Das faces que ofereço
Medida do que pareço
Sou desencontro,
Sou desconcerto
E meu lugar é o espanto.
Sou um e sou tantos
Versões postas ao avesso,
Um nome vagando a esmo,
O eco partido do pranto;
Sou tantos, e sendo um,
Eu sou o mesmo.
FÊNIX (Cesar Veneziani)
o verso me engole
flutuo no suco gástrico
me desfaço, decomponho
algo nutro
xxxalgo resto
e excreto
renasço poeta
INVOLUNTÁRIA (Diogo Mizael)
parto
do pesadelo
de consciência
limpa
uma boca
de quatro línguas
no quarto
do crusp
espera alguém
que não tenha
passado
LEX TALIONIS (Hamon Vaz)
Eras infinitas de amor
Existem porque você existe
Não é pedido para ser de joelhos fortes ou franzinos
Nem curvada se apresente
Ainda assim quero ver seu cabelo esvoaçar
E fincar meus olhos nos seus olhos, meus dentes nos seus dentes
LIXO TÓXICO (Flá Perez)
Sangro mais que pelos pulsos,
olhos, boca.
Sangro ideias obscuras.
Desato o torniquete
- não houve tempo pra sutura -
do corte escorrem algoritmos,
radioatividade, manias,
palavras desconexas,
puzzles, poesias.
Cheia de ódio,
ainda assim gozo
e atônita,
olho o papel,
as linhas.
E amasso vestígios,
varro-te,
atômica ventania!
MINHAS MULHERES MALUCAS (Vlado Lima)
Para Charlie Harper
não morro sóno caritó
à míngua
minha língua-ímã
sabe o X do mapa das mina
é só engatilhar meu olhar 171
e PUM! PUM! PUM!
tá armada a cilada
é só correr pro amasso
(um abraço)
e faturar a cantada
minha lábia-ímã
sabe a rima
sabe o clima
e a sina
(triste sina)
de só atrair
mulheres sentimentalmente
prejudicadas
Vanessa
conheci no carnaval
tomava Gardenal
e dizia que tinha pobrema de cabeça
Eulina
menina pra sarro
louca por carros
cheirava a gasolina
Malu
crente do rabo quente
miguelava a frente
mas liberava o cu
Leonor
Vagaba masô
curtia uma porrada
adorava sentir dor
lembro-me de uma
a mais maluca de todas
tipo comum
média estatura
nem gorda
nem magrela
disse-me um dia
assim
na cara dura
sem anestesia
EU TE AMO!
(...)
chapei
pirei
dancei
casei com ela
MORRI AMANDO (Pedro B.)
Morri amando
Morri amando
Morri a mando
de seu marido
MULTIDÃO (Dudu Oliveira)
Agora sou ninguém em muitas faces
Disfarce de silêncio em seco canto
O tanto que do todo se reparte,
E a parte que faz crer em tal espanto.
Adianto que esta paz precisa é nula
Regula feito escárnio com lirismo
Abismo de volutas, linhas turvas,
A curva da espiral que molda o mito.
Um grito toma o céu indiferente
Latente vê brotar à dor que mata
Que salta pela falta que ressente
Carente deste gozo que maltrata
Retrata de revés, mesmo que ausente
A mente quer viver a dor exata.
NÃO (Vicência Jaguaribe)
Não.
Que o meu silêncio ao teu silêncio
Não fale de conformação.
Não te passe a impressão da aquiescência
Nem te sopre da complacência a ilusão.
Não te iludas.
Nada mudou na essência,
Ainda que na aparência paire a quietude.
O lago, que na tranquilidade azul
Promete calma, e passividade acalenta,
É um abismo que funde nas entranhas
A estranha alquimia da dor e da saudade.
E a qualquer momento lançará,
Em jatos escaldantes,
O que foi fundido
No furioso calor do estraçalhamento.
NOVENÁRIO TORTO (Rosa Cardoso)
faz tanto tempo, meu pequeno
leio tuas entrelinhas gritadas
e me escondo nos entremeios
protegida pelos símbolos
escorrego na tua língua
uma imagem quieta e perdida
nessa retina cansada
há tantas nuvens, meu menino
e a chuva caindo
sobre teu sorriso de quem desentende
e se surpreende
com esses barcos desencontrados
a poesia,essa menina danada
trepada num galho
recita versos que caem no meu colo
enquanto durmo
recito teu novenário
feito de sorrisos distraídos e avaros
sonhos de praia perdida
teus olhos sussurram
deslizam céu e mar
eu presto atenção
mão no queixo
soletrando pelo dia
tuas palavras avessas
construo barquinhos de papel
de versos esquecidos
que guardo bem na curva
perto da aurora
...aquela que não te dei
PAIXÃO (Cairo Trindade)
a morte do amor:
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxum buraco
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxum sufoco
toda morte é corte:
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxtira um naco
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxabre um oco
a morte do amor
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxdeixa o eco
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxde um soco
O POETA E O POEMA (Willian Delarte)
O suco de um coração moído não embeberá a poesia
A razão de sóis diluídos não a clareará
O Poeta morrerá sem que o Poema:
expurgue uma só emoção
arranhe qualquer questão
coce dois ou três dilemas
(nenhum verso poderá salvar a alma do poeta...)
Imprestável, descartável,
o Poema é adereço inútil em sua sombra,
uma droga antianalgésica que lhe consome
como um jeito doce do amargo saborear
(e não o salvará...)
O que nasce da vontade de libertação
é opacidade na representação do dia -
do ritmo,
do belo,
da própria alma da poesia
(e nunca o salvará...)
O Poema é um espectro fosforescente numa noite escura
O Poeta de binóculos só enxerga o que não vê
Na varanda onde o Poema dorme sem textura
um dedo o tateia em braile, mas não lê
(e jamais o salvará...)
Surgirá como uma azia sutil,
qual célula gorda e cabeluda
no pé da garganta, que abriu
uma fenda entre o cérebro e a bunda
e não
nunca
jamais o salvará,
ainda que o Mundo possa revelar
no espontâneo assombro que o eleva,
tal como um ponto de luz pode tornar
evidente o poço sem fim das trevas
PRIMAVERA ÁRABE (José Henrique Calazans)
Nosso berço balança
nas ondas da Revolução.
Que as areias devorem
os cadáveres dos mercenários
e as preces sejam armas
na luta contra os tiranos.
Que as fronteiras se dissolvam
numa afronta aos hipócritas
e as pirâmides testemunhem
o nascer de uma Era.
Que o grito dos mártires ecoe
por Rabat, Trípoli, Mascate.
E o siroco receba um nome novo:
Liberdade.
RISCADOS E DESENHADOS (FlaV Cast)
Por que querer
Parece geométrico
Como se fosse reto
Um caminho direto
Pois estamos presentes
De linear os esquadros
Das nossas conjunturas
E algumas testemunhas
Paralelismos em opostos
Foram duas retas corridas
Abertas em compasso, riscos
Entre nós tantas tangentes
As quadraturas das tuas curvas
O risco eminente de você de luvas
Quase tão suave quanto sua calma
Eu finjo não ter pressa, mas me abraça
Porque entre os números, a sorte
Dentre os mantras, nossos suspiros
Entre o dia e noite, nós, nem sempre a sós
E entre o antes e o depois, colocamos risos
Porque onde estivermos o sol aparece
A lua bem vinda sem hipocrisia, magia
Saturno às vezes me faz bicudo, pontuo
Porem libra meio destrambelhada, equilibra
Porque ainda temos muitas páginas em branco
Levo lápis de cor e caixas de tintas, tira fotografia?
Confesso, rabisco letrinhas miúdas em noites de lua
Mas matreiro, entre o vinho e o poema te deixo nua.
SANTUÁRIO (Allan Vidigal)
Quando talvez não me encontre,
não me procure
no escuro onde me escondo:
aqui vivem monstros.
Aqui, apenas vento frio,
as águas paradas
e nós, os monstros.
SEGUINDO (Salma)
No trânsito
Olho através do vidro sujo e riscado do ônibus
A miopia me atrapalha.
A frequência da rádio falha
E a música se desfaz num chiado
SEM MOLDURA (Izabel Lisboa)
um raio de sol escarlate
feriu a boca da noite
o mundo cão farejou o assombro
o corpo
do outro lado da rua
o corpo
o grito
o sangue vivo
no paletó branco de cambraia de linho
um único golpe
uma lâmina afiada
o asfalto vermelho
no ar
um cheiro agradável de pão quentinho
espalhava-se com a aurora
NEM TODO RITMO... (Lúcia Gönczy)
nem todo ritmo é luz
nem toda onda nada
o etéreo nem sempre vaga
a pista nem sempre ata
o beijo nem sempre é língua
a transa nem sempre é gozo
fugaz não quer dizer nada
o corpo nem sempre é osso;
sonoro também é ausência
de nada que nada vale
presente não é passado
senhor das horas, do tempo
nem toda ferida sangra
nem todo ungüento sara
aurora quase boreal espalha
vento fumaça fuligem
no ser que tudo abraça
nem todo abraço afaga
traço meu traço vago
à lápis à vida
cansaço
no punho,
aço.
SONETO IMPERFEITO (Daniel Leduki)
Soneto imperfeito
Gravetos pontiagudos
Perfeitos, espetados
No peito do próprio conceito
Fazendo do corpo
Saleiro de sangue
E na carne que dorme
O cerne que se consome
Mas e a meta do mote?
A métrica é o norte!
Enlace com corda puída
Sapatos versados de lama
Perdem-se na ponte caída
Enquanto se esvai a alma...
TODAS AS FICHAS (Diogo Mizael)
desligou
o telefone
após transar
com um desconhecido
a mim
agora,
só cabe dizer
que sou
o filho da puta
que telefonou
no dia seguinte,
os melhores
quadros foram
os que Modigliani
destruiu
III O ULTIMATO DOLOSO-MUDO (Nina Martins)
hoje não uso cinza
nem que seja só até melhorar do estômago
ou até os jambos logo pularem das árvores
sempre que começam as chuvas
quem mofam os sapatos
e fazem poesia nas redes sociais
agora não acho graça da minha desgraça alheia
que nem a eficiência do meu esquecimento
faz mais
enquanto não saio de casa
não me abriga a sola
ou os problemas da ansiedade
que fazem teorias depois do almoço
não ciscam no chão como galinhas e pombos
mas escavam rápido como vermes vampiros
VOCAÇÃO (Allan Vidigal)
Passar pela vida como o enorme
cavalo baio da morte,
esmagando o mundo com os cascos.
Não que nem barata tonta,
que causa asco, se tanto,
jamais real dano;
algo mais como um elefante aflito,
paquiderme acometido de brutal labirintite.