P:P-P

Palavra-Porrada é um ezine mensal com textos que só têm uma coisa
em comum: teor zero de açúcar.

Os textos-porradas não têm que ser agressivos. Não têm que ser
violentos. Não têm que ser grosseiros (aqui tem até poema de amor,
mas sem rima de "coração" com "paixão").

A participação é livre e recebemos material até o último domingo
do mês anterior a cada edição. As instruções para envio estão na
guia "Dê Porrada!". Claro que não dá pra publicar tudo o que
chega. Mas a gente lê tudo o que recebe e escolhe cerca de 30
de cada vez.


Este XIV Round traz André de Castro, Benê Dito Deíta, Betty Vidigal, Carlos Eduardo Ferreira de Oliveira, Cesar Veneziani, Dani.'. Maiolo, Diogo Mizael, Dom Ramon, Flá Perez, Giovani Iemini, Isadora Krieger, Izacyl Guimarães Ferreira, Jorge Mendes, José Antonio Cavalcanti, Jurema Aprile, Leo Lobos, Ricardo Ruiz, Romério Rômulo Valadares, Solange Mazzeto e Vlado Lima, além dos responsáveis pela bagunça, Lúcia Gönczy e Allan Vidigal.


Fomos assunto do programa Prosa & Verso da Radio Senado. Dá pra
baixar aqui.

1 de dez. de 2010

P:P-P, IX Round

ABJURAÇÃO (Celso Mendes)

abjuro desta santa que me despe
destas tardes de loucura
desta mão que me esconjura
destes infernos tangentes

abjuro das ilusões carcomidas
das aflições recorrentes
das correntes, das acácias
dos olores multicores

abjuro amores inconsequentes
sonhos permanentes, soluções pertinentes

abjuro, enfim, do azul de todas as fadas
do vermelho destes meus demônios
dos venenos que destilo
e desta estúpida lucidez que me entorpece


ALZHEIMER (Allan Vidigal)

Além das rachaduras da fachada.
Além dos portões,
do ranger das dobradiças,
depois do hall de entrada:
o velho salão.

Que é feito das festas
onde hoje há só teias e traças?
Onde hoje poeira e luz baça,
outrora boleros,
outrora foxtrotes e valsas.
Que é do rodar de vestidos?
Dos tules e tafetás?
Das risadas dos convivas?

Nada resta no velho salão
a não ser a vaga memória
daquilo que foi um dia:
o centro da casa em ruínas.

No meio do assoalho,
uma joia esquecida
brilha de vez em quando
sob a luz das claraboias,
e o salão se lembra e chora.


UM ANJO (Sandra Santos)

um anjo
soletra meus versos
ao pé, duvido


ATERRO SANITÁRIO (Allan Vidigal)

Entre os dejetos e os descartes
(Darwin ou Lavoisier?),
no meio daquilo que ninguém quer
bem no meio, ali,
daquilo que seria um hodierno sambaqui,
o mais banal dos embates.

Cravam as presas pequeninas,
arrastam garras e dentes
nas carnes do oponente
dois ratos e uma criança com fome.

Quem ganhar come.


CERTAS CERTEZAS SÃO SANGUE (Alexandre de Paula)

Seja sempre maldito todo Nome
Santo. Certas certezas são Sangue
O cálice está cheio e há quem tome
Da Mentira que sangra, mata e langue

Sempre seja bendito todo verso
Profano, o engano seja sempre humano
E pertença a ninguém o erro disperso
Não se cubra o universo com vil pano

Sons de sussurros sorvem o silêncio
As lágrimas perdidas são sentidas
E a verdade agoniza no eco pênsil
Nos cordões destruídos dessas vidas.


CHOVE (Cesar Veneziani)

chove
molha
sujeira
trânsito
vidro embaçado
um saco

não me lembra choro ou lágrima
por amor perdido
nem tristeza ou solidão
(o diabo que a tenha carregado!)

é apenas água que cai
molha
sujeira
trânsito
vidro embaçado
um saco


OUTRA CRIATURA (Betty Vidigal)

Era outra criatura, não era?, aquela que se ria nos motéis?
Vestida de um colar de pérolas e anéis.

Esta que agoniza sobre a cama não pode ser a mesma.

Chamavam-na princesa e ria-se, e se ria,
Segura
daquela espécie de nobreza
que a beleza confere
- conferia -, certa
daquele cetro
que nada nem ninguém lhe tiraria.

Exceto o tempo, estúpido carrasco.
Exceto o câncer, verdugo empedernido.

Olha bem, meu filho:
que por ela
homens se destruíram,
mulheres
se desestruturaram e crianças cresceram sem família.
Olha esta pele sem viço, os braços murchos,
e constata como o amor é passageiro.


DIONISÍACA (Cairo de Assis Trindade )

álcool me faz falta
como me faz falta o palco
o afago o aplauso

álcool me deixa alto
um tanto santo - em alfa
um tanto safo - ou fauno

álcool me põe calmo
dá outro feeling
outro timing

(entre éter e éden
provo a vida
palmo a palmo)

beber me deixa leve
álcool me lava a alma


DIVÃ (Lena Ferreira)

Ah...
Não fosse tu e tuas verdades
escarradas no meu verso presunçoso
seguiria, vaidosa, arrotando: sou poeta!
- ego inflado pelos elogios tecidos em seda -


Incomodo estrelas, maldigo luas, amaldiçoo fases
em frases sem sentido, desconexas; queixas
na tentativa de esvaziar o pote que transborda; só
faço da poesia um leito onde teço desabafos; divã

Ah...
Não fosse esse meu vício de dizer verdades
inventaria as mentiras mais convincentes e belas
decorando o verso com a mais perfeita rima e prosa
meu poema, perfume de rosas, não te nausearia tanto...


ENTREMEIOS (Tiago Oliveira de Souza)

Bem no meio da briga
Taco a taco,
Faz o meu oponente
Um gesto feio!

Eu, que não o julgava
Muito fraco,
Olho e digo pra ele:
"Faltou freio?"

Muitas coisas da vida,
Eu não saco.
E compreendo que estou
Só a passeio.

Mas dizer que nos outros
Há um vácuo,
Esse tipo de gesto
Eu odeio!

Para fim de conversa
Eu destaco
Aos que dizem no meio
Ter recheio:

Sempre há
Quem do meio
Tire um naco.

E aos que pensam que estou
De saco cheio,
Digo, então, que vazio
Está meu saco

De gozar
Toda a vida
Nesse meio.


HARDY HAR HAR NO INFERNO (Vlado Lima)

as coisas melhoram
a gente morre
(.)


INUMANA DOR (Reinaldo Luciano)

Lixo-me para a dialética do socialismo gordo e rubicundo,
para o mercado de capitais e capitais pecados
do terço desfiado e sem rosário - espinhos, talvez!

Lixo-me! Lixo-me outra vez para a verdade
e a veleidade inútil democrática...
Antes a socrática saída - porém, nobre!
A sociedade cobre estas feridas...

Lixo-me mesmo para a vida - origem, meio e fim!
Não mais me iludo com o lixo acumulado da fartura,
e sobrevivo avesso à literatura inusitada
montada sob o efeito de palavras escolhidas
e a esmo unidas sob um manto de cultura...

Lixo-me mesmo para a vida e a morte!
Tornei-me estrume imune aos seus avanços
e no ranço sentido eu me misturo
e lixo-me por viver do escuro lado avesso às gentes,
mormente pelo tudo não visto e não sabido...
Não vi e não sei, mas eu me lixo!
Sem lei é o mundo - obscuro;
e eu - bicho homem - me afundo mais neste monturo
de sonhos nus e enfadonhos
disputando o espaço infecto com urubus...

Lixo-me por ser homo erectus
quase quadrúpede - tão curvado - um bípede involuto e involuído.
Neste monte de lixo esquadrinhado
eu luto sem ter vivido
e lixo-me!


O JARDINEIRO (Tiago Oliveira de Souza)

Prepara o campo
Ceifa todas as flores das quais não gosta

Planta uma semente

Regada a sangue e lágrima
Sob a luz fotossintética de sóis missivos
Brota intransitiva e vermelha
A flor do Holocausto


LIVRE INICIATIVA (Nilson Moreno)

Porque eu não escrevo, o poema é sozinho
se sai escrevendo, se escolhe e se inspira
depois se arrepende, então chora, suspira...
eu fico assistindo tomando meu vinho!

Poema carente procura carinho
então se dedica outras odes e liras
quer ser infinito, no eterno se mira
enquanto o observo vaidoso e mesquinho.

Poema arrogante, poeta, um omisso
não viu nada disso, servil, não fez conta
engana que é gosto, perdoa que é vício

distrai-se nas rimas não sobra uma ponta
que seja desculpa, lhe explique o sumiço
(o vate é tranqüilo, poema é que afronta).


MAGISTRAL (Solange Mazzeto)

o fígado padece
apodrece
dissolve

lama nos olhos
figura marcada
silhueta diluída


marcas da exposição
nas unhas do coração

indelével
ela se doava

e paria


MULHER COM MAIS DE TRINTA (Paula Martins)

Agora sou louca desvairada
Com coração de pedra
Até que a fúria de um vendaval
Ou a força de uma enxurrada
Destrua a rocha e deixe
Estilhaços em meu corpo

Meu coração está fechado para balanço
Mas está de portas abertas para
Montanha russa e tobogã em precipícios
Já sou mulher com mais de trinta
Cansada de brincar de meu benzinho
E ursinhos de pelúcia.

Quero rosas vermelhas com espinho
Mesmo que eles encravem em minha pele
E eu os arranque com meus dentes
Encharcando meus olhos de vermelho sangue

Porra! quero viver, deixem-me
Será que posso ao menos
Pisar no solo sujo da vida
sem tapetes vermelhos
Sentindo seus conselhos inúteis na pele
E pelos meus poros derreter verdades?
Não me protejam, quero correr os riscos
Demasiados humanos, qual o problema?

Deixem meu coração sangrar paixões sem fim
Já se foi há tempos a infância de minha alma
E da adolescência de meus desejos e amores
Restam-me indeléveis lembranças
De ridículos príncipes em cavalo branco.

E que me sobre ainda a solidão
de e uma Eurípedes inteira
Escalando o precipício
Com Orpheu na contramão.


O MUSEU DO ABSURDO (Alexandre Brito)

no museu do absurdo
ninguém é surdo
só que ninguém ouve ninguém

no museu do absurdo
ninguém é mudo
só que todo mundo fala junto

no museu do absurdo
ninguém é cego
só que os umbigos batem no teto

no museu do absurdo
tudo é uma loucura
só que ninguém procura cura

no museu do absurdo
a loucura sempre é do outro
nunca é sua


NATUREZA MORTA
(Paulo Gomes)

Tenho fome,
sinto frio,
às vezes medo,
mas ainda assim ranjo os dentes
e vou em frente.

Se você me der carinho,
abrigo e um cobertor quentinho,
vou ficando, amansando,
talvez até dome o animal selvagem
que mora dentro de meu peito.

Mas não, você não o faz,
simplesmente vem,
simplesmente vai,
torno-me ainda mais arredio,
ainda mais vazio,
indiferente,
instintos descrentes.

Outra noite você volta,
eu faminto te devoro,
rasgo suas roupas,
corto sua pele,
bebo de seu gozo,
depois acabo, parto,
deixo uma poesia sem laço.


PALIMPSESTOS (Flá Perez)

Escreve um poema doido
correndo desde as escápulas
até a curva das minhas costas
onde começa a bunda

(a parte que mais gostas).

Mas não dá pra escrever
nada perene
na pele da prexeca;
a tinta nunca seca.


[UMA PITADA DE SARCASMO] (ükma)
Enquanto eu picava pimentão

pensei com meus botões:

...Meu Bem é assim,
atencioso com todas,
feito o sol
que visita
os varais [de roupas íntimas]
do mundo inteiro.


PASQUALE PERGUNTA (Vlado Lima)

1
Pasquale diz
: põe o Poe na prateleira
em meio ao bolor das Barsas
e a cárie dos ácaros
no instante equidistante
entre o Inferno de Dante
o Pó de Fante
e o Coração de Conrad

2
Pasquale pergunta
: servir Cervantes
aos ruminantes
pode?
ipod
mas só se for em drops
ou fast food
pois aos olhos toscos
dos ogros bocomocos
as venturas & desventuras
do Cavaleiro da Triste Figura
(sem figura)
é um antepasto indigesto
troço com tremoço
tijolo com torresmo
aos olhos ogros
dos bocomocos toscos
só mesmo
o poeminha-papinha-de-nenê
com rimas redondas
românticas e
reumáticas

3
e Pasquale pergunta
: no final será o fim?
S-I-M!
os poetas medíocres
reinarão absolutos
nas cavernas
e Chapolim
enfim
será -
além blog
além blague -
incompreensível às massas


QUANDO E NUNCA (Ruy Villani)

Desconcerto
O que havia de ser certo, se esvai
E vai a idéia, que era tanto oportuna
Se vai como a borduna na cabeça
Sem objetivo e nem pressa.

Me aperto
Procuro a imagem diluída
Quem sabe, a resposta às perguntas da vida
E sem a menor importância,
Por maior que seja a ânsia.

Perdi os meus versos compostos no caminho
Mas não perdi o ninho, choquei apenas outros ovos
E se não escrevo versos novos
Não há os que perdi.
Esses não existem mais.

Assim, comportadamente aprendo
O que significa o quando
O que quer dizer o jamais.


RASTROS (Carlos Savasini)

I
Nunca mais uma dose,
loucura pouca é bobagem :
ou ao céu as asas se estendem
ou ao inferno as mãos chafurdam.

II
Nunca mais meias palavras
ou meias verdades
ou meias mentiras :
meio copo vazio pede a sanidade acética
e meio copo cheio pede o porre homérico.

III
Nunca mais o silêncio agonizante
ou a verborragia vazia :
antes o muro que as forças neutraliza,
antes o campo que as forças dispersa.

IV
Nunca mais pouca loucura,
nunca mais pouca sanidade :
negro que é negro é preto e reluz,
branco que é branco é claro e ofusca.

V
Meu lado é o que deixa pegadas.


RANHURAS DE DOR E CHICOTE (Larissa Marques)

ranhuras de dor e chicote
no leito de corte
gado cativo
em abate, sem redenção

ungidos todos
vivos e mortos
na alameda florida
nas costas azuis
de Riviera prostituída
e paridos e deixados
na Avenida São João

adversativa
pedra e pau em mártir de algodão
santo sudário, toalhinhas de puta
em profanário, bacia suja
sangue e porra no chão.


RECIDIVA (Reinaldo Luciano)

Morreu João, velho e sozinho no asilo...
Morreu Maria abandonada na rua...
Morreu Miguel bêbado na estrada...
Morreu Antônio assaltado...
Morreu Pedro na fila do hospital...
Morreu bebê abortado...
Morreu Helena de overdose...
E eu morro entediado
porque meu poema é tão repetitivo
e ninguém o lerá...
Um só verso bastaria!

E seguimos todos, omissos,
dizendo: Isso é comum hoje em dia!
Não temos nada com isso...


RESSURREIÇÃO (Cairo de Assis Trindade)

quanta vezes me atirei
do quinto andar deste tédio,
tomei veneno, sangrei,
abri o gás, me enforquei
ou me matei com um tiro
sem que ninguém ouvisse
nem pressentisse o desatino
por detrás do meu sorriso.

cansei de tentar acabar,
de vez, com a minha vida.
hoje eu já não me mato.
- coisa mais careta! -
tomo um pileque, caio na farra,
mudo de cara, de casa,
troco de caso, de tara
ou simplesmente bato uma punheta.


A RUA MORREU (Carlos Savasini)

Por veias rasgadas
esparsas
insones
a juventude envelhecida
sem facas nos dentes
sem flores nos dentes
sem verbo nos dentes
com papas nas línguas
morreu
nas ruas rasgadas
esparsas
sem vida.


SÃO JOSÉ (Tiago Oliveira de Souza)

São José. Luz opaca. Rua estreita.
Um bafo bêbado mandando porre.
Enquanto o sangue quente ainda escorre
De um jovem que aderiu à nova seita.

Maria dos Prazeres só se deita
Pra saciar o vício que a dessorre.
A pobre por dez paus do pau não corre.
Na lata põe a pedra e se deleita.

A sensação de gozo é tão barata
Que o corpo se despenca sobre a lata,
E só quem está perto sente o baque.

Ao acordar enxerga-se aos pedaços!
Levanta a tropeçar nos próprios passos
Para trocar o corpo por mais crack.


SEM VOLTA (Gisela Rodriguez)

Olha para cá e observe:
Meu corpo dança
Uma dança muda
Que insinua sexo
Com você

Insinua essa tarde
Na aragem que flutua
Rosa púrpura, violenta
Entre teu corpo
E minha vontade

Tua voz já ficou
Instalou um prazer
No meu centro
Aquele delírio de paixão
Decretou meu fim

Um começo ao avesso
Dentro de ti minha boca
E tua sagacidade em mim.


TOQUE (Lúcia Gönczy)

o pensamento me toca
me toco quando te penso
que mesmo frente ao ar
mais denso,
levito entre dedos

o pensamento me toma
e acre, descontento-me;
são tuas, as minhas mãos
imensas, imersas, vazias

o tempo do toque
entre o púbis e o sonho
incansável, frenético, tenso...

o pensamento me toca
prenho-me de estapafúrdios gozos;
deliro teu nome por dentro

posto que, meu segredo [in]visível,
continua calado conflito:-

amor e pensamento
toque e desejo.


DO TRI-CENTENÁRIO DE ZUMBI (Valmir Jordão)

Quilombo, Angola-Janga,
guerreando pra viver em paz,
igualdade direito de todos
salvaguardado pelos Orixás.

N'zambi, Zombi, Zumbi grande chefe
engravidou a Serra da Barriga,
de negritude, coragem, resistência
quilombola guerreiro bom de briga.

Mombaça, Congo, Camarões, Daomé
África oceânica palmarina,
enfrentando o amargo do açúcar
escravidão, tortura, má-sina.

Malungos nas várias Senzalas
Quimbundo, Mandinga, Jeje, Yorubá
em fuga, derrubam paus mandados,
pra ter tempo de jogar o Caxangá.


TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO (Larissa Marques)

qual ficção celeste
essa linha imaginária
transfigura mapas
e ameniza calores

se não fosse o paralelo sul
onde meu equador abranda
seria liberta a febre tropical
que consome certos limites

hei de controlar meus solstícios
e essa desistência opaca
quase uma declinação ao frágil

hei de controlar as dores
e essa permanência estática
esse meridional em mim


TSUNAMI (Betty Vidigal)

a casa debaixo d'água

sombras andam pelos cantos

meninas e frutas na cozinha

na parede
um relógio
onisciente
tiquetaqueia exausto

- e o tempo sempre parado

Mas a água se move e ondula
abre fendas nas paredes
da sala

As camas no mesmo lugar
com suas colchas molhadas
estendidas com cuidado
sob as águas

e ainda há flores nos vasos
entremeadas de algas

e as estantes da sala
escuras, sólidas
sem se abalar suportam
o peso
dos livros mortos

só os cabelos das meninas flutuam
no ritmo azul das águas


URBE SEDUTORA (Ruy Villani)

Há uma paz perdida
Na quase lua cheia
No brilho do crescente
A luz condescendente
Se achega e apeia.

Há uma paz gostosa
No cão que abana o rabo
Dá cabo do cansaço
E elimina o traço
Da urbe chorosa.

Há uma quase triste
Nostalgia quente
Que reinvade a gente
Sem pedir licença
E sem sem cerimônia.

Alegoria Jônia
Coluna descartável
Um capitel inflável
Uma incompreensível
Forma de estetas

E há o rugir urbano
Um quase indecifrável
Barulho ruim e amável
Como são os sons
Dessa cidade infecta.

E há enfim o artista
Que dela leia o belo
E bata o martelo
Sobre nossas mentes
Sempre tão de casa.


VULVA (Adriano Nunes)

Ele diz que vulva é vulgar
No poema. Ele sequer pensa

Que o poema dispensa só
Lixo podre não reciclado,

Poetas sempre triviais,
Preguiçosos, cheios de si,

Pretendendo sempre fazer
Do poema uma vil pocilga.

11 de nov. de 2010

P:P-P, VIII Round

A ARTE DE COMER ALGUÉM - VOLUME 1 (Vlado Lima)

xxxxxxxxxdúzias de dálias
xxxxxxxxxavenidas de margaridas
xxxxxxxxxe um bando de pandas Lionella
xxxxxxxxxvinho
xxxxxxxxxvela
(aquele) versinho do Vinícius
xxxxxxxxxe a voz de Billie na
xxxxxxxxxvitrola
xxxxxxxxx(...)

xxxxxxxxxem último caso digo que
xxxxxxxxxxxxxxxxxxcaso
xxxxxxxxx
xxxxxxxxx(.)

xxxxxxxxxxfinalmente
xxxxxxxxxxdepois de comer você
xxxxxxxxxxescalo o Evereste por uma guirlanda de grão de bico
xxxxxxxxxxe no topo do topete do Tibete
xxxxxxxxxxcom meu indicador roçando o ânus de Deus
xxxxxxxxxxfumo um cigarro
xxxxxxxxxxe grito: Wando sou eu!


ABORTO TARDIO (Flá Perez)

Pobres criaturas impotentes
que cortam em pedaços nossas filhas
e jogam displicentemente aos cães:

malditas sejam suas mães!


ACICATE (Igor Buys)

Tantos almejaram e com tal sanha nos ver separados e feridos;
Tantos tramaram e murmurejaram, sem rostos e sem vozes,
Por entre frestas e canalhetas, como maus espíritos e ratazanas!
Agora, por certo, todos esses se rejubilam em êxtase,
Por certo uivam, felizes e galopantes,
Sob o mármore lunar que os observa.

Pois bem: eu só preciso de tempo.
De tempo e da pecúnia mui metódica
E castamente reservada, acumulada e consagrada - à vingança!
Eu só preciso de nomes e endereços,
Comprados ou esfolados de sob línguas mancomunadas e peçonhentas.

Sim, quem com a língua apunhala da espada será bainha
O corpo flácido, a alma entregue aos cães do inferno!

Encontrá-los-ei e que me guie o acicate viajante o Deus da vingança,
Aquele mesmo para quem o salmista semítico louvara cantos,
Dançando, ainda, ao som de instrumentos, seus versos rubros!

Eis a minha sina e redenção: o aço, o fio, o fogo silenciado
E o manto da noite com a pantera humana mercenária,
Cega entre as sombras, como mascote!

Hoje, entre mim e ti há um halo: a memória da ternura
E a ternura da memória represando o tempo;
Tudo o que um dia foi sonho, sorrisos e suspiros,
Versos suavemente sussurrados aos ouvidos,
Silêncios sinalizados, saudades, mil segredos,
Tanta afeição, tanto desejo... Soçobrando.

E é em nome desse arco estilhaçado que te peço:
Não abras os jornais, tampouco os ouvidinhos no dia em que eu banhar
De gemidos escarlates e outras babas as minhas luvas negras e precisas!


AMARELOS (Cesar Veneziani)

Que berrantes amarelos do Vicente!
Antes fosse do Van Gogh, o tal pintor...
Não do quadro, o amarelo é do seu dente
Que o fumo transformou naquela cor.

No seu rosto, tão marcado, diferente,
Que parece uma expressão de pura dor,
Tem contornos esculpidos a aguardente
Que, sem vida, nem é paz nem é horror.

Quando fala, nem saudoso ou revoltado,
Pelas marcas do destino em sua tez,
Traz na boca um sorrir dissimulado:

Fiz só coisas que se quer mas não se fez:
Fui devasso, tanto amei e fui amado,
E faria tudo isso outra vez!


AUTOPSICOFAGIA (Hernany Tafuri)

O poeta deixou de ser há tempos!
Descobriu que fingir era coisa
de ator e, como dizem que artista
ou é viado ou é sustentado pelos
pais, foi aprovado em concurso público
e agora é um burocrata chato pra caralho.

E os que leem o que escrevera
suspiram e dizem: "Por que parou
parou por quê?" O ex-poeta responde
com palavrões pelo orgulho de nunca ter
sido compositor de axé!

E assim aos canalhas de sua roda
diz que está satisfeito mas no fundo
sabe que um girozinho na catraca não
faz mal a ninguém - ainda mais quando
o que o tenta vem do coração!


BIO-GRAFIA (Lúcia Gönczy)

da sarjeta ao cosmos
pragmática sem anestésicos
verbais
eis que insurge contrariando
modismos
aquela que seria e não é
a causa de bocas e restos
vomitando anarquias
escandalizando senhoras
nas janelas.
entretanto, se vale da avaria
com que mede-se o dano:
de vir a este mundo, não a passeio,
mas escancarando.


CANINA-MENTE (Claudio Macagi)

Perpasso tempos
Transgrido horários
Corro por campos descampados
Desconexos verdes secos
Pedregulhos macios
Crateras planas
Homens tortos
Pessoas uniformes
Cheias de vazios
Tropeçantes malabaristas
Vegetarianos devoradores de carne
Inconseqüentes precavidos
Medrosos audazes
Intrepidamente covardes
Cães que não ladram
Mas que escondem no fundo de seus quintais
Ossos humanos enterrados


CÃO DANADO (Dom Ramon)

Entre uma baforada e outra trocava um dedo de prosa com certos amigos do serviço. Ritmo cansado de um dia corrido e cansado. Gente cansada, assuntos cansados.

Só o Diabo sabe o quanto um tabaco é bom pra relaxar. Gosto de tragadas rápidas trocando os dedos, deixando a fumaça sair naturalmente pela boca. Uma leve batidinha no cigarro pra puxar a fumaça, um soprinho suave: A fumaça vai levantando, fluando pela boca...

Rua suja, gente suja, mundo sujo.

De Deus ao cunilingue, assuntos banais. Gente passando nas ruas. Vida de subúrbio, vida tacanha. Pé na rua, baforada, conversa fiada, baforada, olhar a gente suja, baforada, pé na rua, baforada.

Só o Diabo sabe o quanto é bom uma baforada de tabaco...

Fitando bem esses sujeitos, novatos nessa vida bandida, nessa vida ralada, vida vivida, penso comigo. Sinceramente. Meu velho; estamos no mesmo barco furado.

E baforada, cão danado, e baforada...


CELOFÂNICA (Rosa Cardoso)

Meus dedos cansados
Deslizam
Cordas imaginadas
Pendem sobre abismos

Tensas

Dedilho com cuidado
Velocidade de dobra
Desfolho sonhos apressados

Penso catecismos

Conselhos didáticos
Vagueiam pelas cercas
Em voos celofânicos

Tudo vão

Recolho as asas
Imensas dentro do alambrado


COMA (Rogerio Santos)

na
xxxxxxxxxxxalma
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxum
dano
xxxxxxxxxxxxno
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxcrânio
um
xxxxxxxxxxxdreno
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxna
mente
xxxxxxxxxxxxum
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxplano
um
xxxxxxxxxxxleve
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxaceno
moeda
xxxxxxxxxxxcomo
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxpoema
fono
xxxxxxxxxxfonema
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxpomo
:
xxxxxxxxxxpoema
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxpleno


DEBOCHE (Celso Mendes)

Meu docinho,
como pensas continuar a me enganares
com teu olhar meigo de mel
(olhar Gato-de-botas do Shrek...)
se tua xereca depilada já conheço
bem como a voluptuosa fome de falo
em tua boca que quer ser santa?
Desencanta, Baby!
Esqueces que tuas tatuagens já nada me segredam
e que as bobagens que dizes já sei de cor?
Conheço todo teu contorno
e teus poucos pentelhos
refletidos em espelhos de quarto de motel.
Não queira convencer-me
que sou cordeiro mal,
conheço bem tua aura
de santa de bordel.


DO SILÊNCIO DOS POETAS (Fernando Freire)

o poema
recolhe-se
a escuridão
das frestas
enquanto
palavras perambulam
pela cerâmica fria
despedaçam-se
contra a louça suja
acumulada na pia
nem Beethoven
e sua
7ª. sinfonia
nem a eternidade
e sua
falsa homilia
apenas palavras
e silêncio
velas sem ventania
entregues ao sabor
da calmaria
palavras
sem morada ou teto
sem significado abstrato
ou concreto
traídas no horto
sedentas de rumo
saudosas de porto
em busca
de um poema
seja qual for
a métrica
ou o tema
não precisa
ser elegia
ou soneto
eu juro
eu prometo
pode ser
em verso livre
como a
poesia que vive
na mansão
e na rua
pode falar do sol
pode falar da lua
da minha dor
ou da tua
não precisa
ser poema chique
quero apenas
que chegue
e fique


ESCRITOR (Paulo Gomes)

Tem dia que eu queria ser escritor,
escritor de verdade,
e escrever a história do mendigo
que vejo todo dia e sua casa de papelão,
da prostituta que muda de lingerie
mas não de postura,
do meu chefe que faz a colega ficar de joelhos,
depois se ajoelha,
e finge que reza.

Sobre o aposentado
que vai todo dia no banco
só para sair de casa,
sobre o estagiário
que acha que mudará o mundo,
sobre o ponteiro que luta
constantemente com o tempo,
sobre minha gata cega de um olho
e suas sete vidas.

Quem sabe escrever como J. G. de Araújo Jorge,
outros como Drummond,
alguns como Nietzsche
e ultimamente Bukowski.

Tem dia que eu queria ser escritor,
escritor de verdade,
e escrever sobre as sujeiras
que escondo debaixo do tapete,
os esqueletos dentro do meu armário,
as unhas cravadas em minhas costas,
as artérias de meu coração entupidas,
de tanto amor...


FETICHISTA (Igor Buys)

Eu admito que sou fácil para um primeiro encontro, difícil para um segundo e quase impossível para um terceiro ou quarto dentro do mesmo semestre.

Confesso que coleciono pequenos troféus; presentes, retratos, uns cacos, uns restos de relação que são, enfim, como uma família de cera num museu embolorado e frio.

Tenho mais fetiches do que poros no corpo e esqueço os nomes das pessoas.

Levo a vida de modo egoísta, de modo hedonista costuro os momentos e tudo é sagrado se é do meu agrado, da cerveja no fim do sol ao livro certo na hora silente. A chuva: preciso ouvi-la a sós comigo mesmo. Relâmpagos me arrepiam, ventos frios me trazem desejos, saudades carnais.

Preocupo-me pouco com os outros. Confesso que amo a solidão com ânimo narcísico; minha curiosidade faz as pessoas mais belas serem sempre as que menos se parecem como as últimas que tive por inteiras.

Entretanto, há os casos mal saciados que o coração e a pele querem reviver em sósias físicas e morais até esgotá-las, de modo que Carinas, Carines, Carolines e Amandas ressuscitam e parecem que são sempre as mesmas, até nos nomes.

Admito que há cheiros que inebriam, enfeitiçam e, no nevoeiro da memória ambarina de uísques e auroras, tais olores são assinaturas seguras de rostos inominados, sem ecos ou brasões de família.


FOGO-FÁTUO (Betty Vidigal)

Olhos esféricos,
emergente luminescência
(alma de fósforo e ferro).

O macio tapete do pântano me pertence.
A escura noite suave
pairando acima dos fogos-fátuos.

Eu conheço o caminho e ele me conhece.
Os pensamentos do pântano são meus pensamentos.
Também em mim os olhos de meus mortos submersos
agridem a noite com seus gritos de luz.


GÁS (Allan Vidigal)

Talvez um poema lhe saia do peito,
Talvez venha a nós, outrossim, do intestino.
Pra mim, o poema biscoito mais fino
É o tal que se faz, não aquele que é feito.

E assim lhe respondo, contesto-lhe o pleito:
Não pode um poema, lhe indago, menino,
Fazer-se por si, prescindir raciocínio,
Nascer como espirro, um arroto ou um peido?

Não pode um poema fazer-se, de fato?
Vir não da cabeça, mas sim das entranhas?
Fazer-se espontâneo, sem truques nem manhas,
Qual faz-se uma bufa, ou um traque, ou um flato?

Nos vir por acaso, acidente, de chofre,
Malgrado o aroma de alho ou de enxofre?


ISAÍAS (Dom Ramon)

"Que me interessa a quantidade dos seus sacrifícios? - diz Javé. Estou farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos. Não gosto do sangue de bois, carneiros e cabritos".

Faca, suor, caimbro em depredação e morte.
Pedra de toque e altar, para experção de angústia;
miúda, contrita. Canalha, maldita.
Teu passar só, lento e lívido,
entre essa gente desgraçada, lugar desgraçado;
lagar, de pobres vinhos.

Teu espírito alerta,
e na desgraça clama.
"Não, mas sou".
E de interior, escuro imundo,
escutas tua voz, imunda soturna:

"Sou o demônio, e a própria sombra de demônio,
O Inferno, e o ódio do Inferno.
Ódio, imenso, perpétuo.
Sou tua Sombra, tua carne, tua vida;
sou tua mentira, tua fraqueza, ferida,
sou tua falta de fé,
em ti, desgraçado
e Pecado".

"O empobrecido, que não pode oferecer tanto, escolhe madeira que não se apodrece; artífice sábio busca, para gravar uma imagem que não se pode mover"


LENTE (Betty Vidigal)

Havia o lado convexo das coisas,. Outrora.
Aves perplexas povoavam nossa intimidade,
por dentro das manhãs passava o dia,
de dentro das manhãs chegava a noite.

Havia serenas águas,
o mar de todas as tardes,
uma arquitetura de silêncio
no lado convexo da cidade.

Atrás das mãos estendidas
as crianças se entendiam,
as moças se entreteniam,
guirlandas se entreteciam
de louros, lírios e rosas.

Havia serenas águas.
havia as tardes amenas.
houve uma fonte escondida.

E num ritmo de brisa,
passava a vida.

O nosso sol de cada dia
crescia os frutos da terra.

Éramos todos fantasmas.

No lado convexo,
éramos o reflexo
transfigurado
do universo.


MEMENTO MORI (Tim Soares)

Acorde Vênus!
Outra manhã prateada
Aguarda-te aqui na terra

Hoje não haverá meninas
Pulando corda na rua
Como nos dias alaranjados

Hoje as bailarinas darão lugar
Aos soldados de metal pesado
Fardados em tecidos escuros

Hoje o fim de outra era
Inicia-se
E você é a convidada de honra.


MEU HD (Lúcia Gönczy)

Cemitério de memórias
fracionadas
diluídas
incineradas
...
por você.


99% DE TRANSPIRAÇÃO (Allan Vidigal)

Poemas escritos com esmero:
aqueles que fazem pensar
no autor acordado até tarde,
cioso do ritmo e do metro,
contando elisões e hiatos,
morrendo de medo de errar,
confuso entre técnica e arte.

(poeta esforçado é um saco).


POESIAS BIODEGRADÁVEIS (Augusto Veras)

No momento
Minha única certeza
Era aquela poesia,
Fluindo no cano
Rumo a distante baia
Palavra a palavra
Vestida em nobre caligrafia
Em papel rasgado em ira
Decompondo-se
Em sua biodegradabilidade,
Pelas quentes, úmidas e escuras,
Instancias recônditas da humanidade
Sob indiferentes retinas e alfaias
De ratos , baratas e lacraias...


POIESIS (Igor Buys)

O meu tempo de ser poeta
É menos o momento de esculpir o hemistíquio
Que o reverso momento de expectorar na vida
A frase que corta, deforma, dilacera e até mata,
Deixando chaga e cicatriz que se não apagarão.

Poiesis é sinônimo de magia, de criação física:
O verbo que gera também desfigura e degenera.

O meu poder de poesia
Está menos em deitar o verso sobre a folha nua
Onde se jacta o semântico líquido da pena
Que em ronronar dizeres sem esboço prévio
No ouvido da amante e engravidá-la de halos.

Eu não rabisco versos de seduzir: clamo amor
A contrapelo nos corpos amados e nos juvenis
corações encrespando-os da alma até os poros.
Depois se é o caso, pinto a óleo o amor vivido.
Não sou poeta de papel: rasgo-me nos refrões.

Com a palavra se sobe ao palanque, se declama
A liberdade, se declara a revolta, se ateia o sol
Dentro da noite. Com a palavra se faz a guerra!

O meu mister de poesia
Não está em silenciar-me na metáfora de bronze,
*Mas em profetizar sobre deserto de ossos secos
E ver surgir do alvor movediço os gládios, a fúria!


PRAGA DE MULHER (Oscar Cravo)

Tomar por maldição praga rogada,
em ódio feminino de abandono,
faz não pregar os olhos, perder sono,
e ver luar romper a madrugada.

Feitiço imantado em bruxaria,
vodu, com mil agulhas espetadas,
sentia que de sangue encharcaria
degraus até descer ao fim da escada.

Exausto, sem forçar a juventude,
que fora passear em meu passado,
não quis condescendência nem virtude

na cura da impotente inquietude,
comi na posição de frango assado
o cu da tua amiga...Ah!...Gertrude.


RETÓRICA (Felipe Rey)

fala pessoal
fala figura
fala tu
falo eu

por que
é nós

porque aqui
o papo é reto
e não oblíquo


ROLETA RUSSA (Rogerio Santos)

Estatística
Estática
astasia tísica
catita titica
tática states
iate tati
tesa teta
seta isca
asta taca
tic
...tec
tic
...tec
tic
...tec
tic
...TÁÁC
cai
.cisa
..cista...estase
....astasia
.....estática
......estatística


SERIAL DREAM KILLER (Rosa Cardoso)

racionalmente insana
maquino tudo

tramas complexas
em que mato visões

serial dream killer
passeio sem rumo

deslizo enredos
nas tuas tramas

filigranas de sol
te desenham
nas curvas da parede

delírios de ocaso
traçados no verso


TE AMEI PRA SEMPRE (Nena Medeiros)

Te amei para sempre
Mas acabou
Parece tolice de se dizer
Mas faz sentido
Quando se trata
De nós dois


TODA A CEGUEIRA POSSÍVEL (Eduardo Perrone)
para o amigo, para o poeta Muryel De Zoppa


Meu olhar se perde
E se despede da vida
Todos os dias
E em todas as estações
Passadas.
Meu olhar
Já não enxerga nada
Além dos Outonos
Vividos.
A lembrança
Nos torna esquecidos,
E as visões do futuro
Um pouco mais tristes.
Toda a cegueira possível
Ainda subsiste
Dentro do grito seco,
Dentro do choro abafado
Que desanuvia
O olhar contemplado
Da velhice
Que chega
De olhos bem abertos.
Nascemos -todos-
Cegos...


VERSOS PÁLIDOS (Tim Soares)

Meus versos pálidos
Agonizam mórbidos
Nas mesquitas dos corações mofados.
Meu rosto é só um rosto
Nessa multidão de faces pitorescas
E almas sedentas de sangue alheio
E eu sou apenas uma célula febril gozando de minha morte-vida!


WELL FUCKED (Flá Perez)

É muito bonita essa coisa de língua e dedo,
todo esse platonismo aflito,
autosatisfazendo o corpo
sem ter nenhuma vergonha ou medo.

Mas me desculpem as meninas
e os senhores que não tem pau:

ele é fundamental.

7 de out. de 2010

VII Round

ÁGUA (Ruth Cassab Brólio)

Mágoa, alma crivada a bala.
Boca, não consente e cala.
Terra árida, casa e vala, a vida.
Trégua, o peito, um poço fundo,
em grotão brota olhos de açude,
e extravasa, sem verbo, nem rima
a mansa, cálida palavra-água.

Lágrima.


ARMA BRANCA (Ruy Villani)

Uma dessas coisas
Que não se diz, não se lamenta
Não se agüenta.
Uma dessas coisas
Bem guardadas, escondidas
E assim mesmo, escancaradas.

Uma luz desde o prosaico fim do túnel
O tonel que oferta sempre um copo a mais
O jamais que fica sendo cotidiano
O insano que insiste em ser normal

O jornal das mesmas notas, dia a dia
Minha pia crença em plano e linha reta
Abjeta, renegada, insistida
E, contida, é refém de realidades.

Nem poetas, nem algozes, nem palhaços
Nem os traços mais distantes de mim mesmo
Me permitem percorrer, à toa, a esmo,
Um caminho diferente do proposto.

Isto posto, baixo a guarda, entrego a espada
E persigo, lance a lance, essa escada
Que não sobe e nem desce, apenas mostra
O que sonhava ser tudo, e hoje, ainda assim,
Tão desmascarada
Não me disse a que veio o escudo
Nem a arma, que se esconde, inanimada.


ARREDIA (Flá Perez)

Égua brava,
cheia de balda,
se encanta com espora
e fome.

Maltrate,
deixe-me uns dias
sem água

só então me dome...

B(R)AILE (Sylvia Araujo)

Sou
inteira
pedaços
fragmentos
cortantes
sílabas
impronunciáveis.

A lápis
me escrevo
à espera
de quem
me soletre
os relevos

- em braile.


BARBARIDADES (Allan Vidigal)

Conhecermo-nos na cama tu e eu de olhos vendados,
descobrirmo-nos no escuro pelo toque, em Braille,
[às cegas.
Te fazer gritar e, após, enquanto em gozo ainda
[ofegas,
começar tudo de novo, mas, agora, do outro lado.

Despejar sobre o teu corpo mel e leite condensado,
explorar, com boca e língua, cada dobra, curva e
[prega,
e jamais nada negar a quem jamais nada me nega:
oras, bolas, convenhamos, o que pode haver de
[errado?

Ter-te assim não sabe a vício, baixaria, nem
[maldade.
Desbravar a tua pele, conhecer cada orifício,
mapear o teu prazer e toda a tua anatomia -

é normal para um casal que tanto ama ter vontades.
E os pudicos que criticam e que dizem ver mal
[nisso,
não os culpo: sinto pena. Têm inveja, é o que eu
[diria!


O BASILISCO (Dom Ramon)

Escrevo, pois vou mal com os olhos. Furaram-lhes; minhas maléficas retinas! Escrevo pelo sangue retido em uma escama retirada. Indolor.

Nada tão risível quanto um temperamento abrandado. Maleável, dobrável, ao bel prazer e divertimento do escrupuloso e inescrupuloso. Da mais fina moral e dos mais moderados manejos gestuais, sincero o bastante para ruborizar em contradição e avesso a afetação de nossos aclamados bonachões, são dos tipos os mais degustáveis. Refiro-me a todos esses tipos médios como objeto de uso. Convenhamos, o predador é mais sapiência da mesma do que a própria pressa

Entre essas ruínas de um sonho de Império irrealizado, em alaridos confetes murmúrios, máscaras de Carnaval, passeia o cornudo a ceiar.

Pois bem. Digamos em tons claros: Um colega franzino, um desavisado cliente bancário, uma pietista frágil, um burro opostunista, gente simples e esperançada demais, uma poltrona. Sustentáculo móvel de uma vida malandra, anseio soçobrado de atormentados versadores. E é assim, as pessoas gostam de ler cartas com sangue e suor, e não gosto de escrevê-las. Palavras, palavras; extemporizam a sensação e a diluem em perspectivas. A realidade em cru é suficiente e muda, acausalidade vil, chamada diabólica ou desumana, tanto faz, vai pela sua credulidade. Ou má fé. Nossos consagrados mentirosos, até por dizer, sagrados, não são feitos de muito mais.

Mas ainda em meandros e rondas noturnas na experiência, furaram meus olhos. Abandonou-me o cornudo com bagaços do mal. Sufocado por meus próprios calabouços, ou cristalizado pelo ódio inocente das vítimas tantas, ou sobrepujado em meu debalde de parecer, inevitável encontro com o mero ser. Já não sou visto se não como sombra e sinistro, e meus olhos só resplandecem martírio.

Morto, sendo vivo. Meramente, e irreal.



"Má Consciência é como denominamos um desejo reticente de algum remorso casual, uma hipocrisia amigável, ou mesmo uma vaidade mais ególatra. Sempre espirituosa a má consciência, quando negada - Pela boca".


CAEM AS MÁSCARAS DO MEDO... (Flavio Dario Pettinichi)

Caem as máscaras do medo no final da tarde
Corpos andam nus e a orfandade do amor cega a
[sua fé
Quem recolherá as lágrimas de dor na poesia
[amputada?
Enterraram mistérios na procura de uma solidão
[iluminada
E nada colheram nos áridos desertos das suas
[desgarradas almas.
Rasgaram as peles nos rosais de espinhos rasos e o sangue coagulou como a palavra que esconde o medo
Nas mãos frias vão sentindo a mortandade do canto e espavoridos correm à um lugar que já não existe
Fizeram da raiva a sua oração e do perdão um poema sem rima engasgado na voz
Há rigidez no seu olhar e o horizonte é um ponto negro onde não existe possibilidade de fuga
Já cuspiram todo o fel que tinham guardado nas suas entranhas e agora o estomago grita a chaga do olvido
A espuma escapa de seus dedos e esvai-se na agonia
[dos seus sonhos abortados
Agora já é tarde, a praia está deserta.


CALO (Norma Santi)

Calo-me eu.
Por quem calas tu?
O calo da vida. O silêncio da boca.
O calo marca, em ásperas camadas,
As dores da pele fina.

O silêncio é o calo do grito
Marcado em curvas do infinito.
O calo é duro,
O calo é nobre,
O calo é a pele que me cobre.

O calo é o registro do tempo,
O calo é a cápsula da lágrima,
O calo sob o pés, os passos da epiderme.
O calo vocal.

O calo são nossas dores
Voltadas para o lado de fora
Espessas,
Explícitas,
Escancaradas,
Paradoxalmente ensimesmadas.

O calo empilha e circunda as horas caladas
[de nossas vidas.


CANTO APOCALÍPTICO (Betty Vidigal)

O bico dos pássaros tem algo de ameaçador.

As flores saltam de suas corolas, agressivas.
O perfume das rosas contém uma advertência muda:
as rosas podem ferir.

Cada onda que arrebenta é como um grito;

Os segredos que a terra inda esconde são terríveis,
Tão incompreensíveis para nossa orgulhosa
[sabedoria:
Senhores do universo,
Entendedores do mistério atômico,
Reis.

O bico dos pássaros tem algo de ameaçador.
As rosas podem ferir.
Existe uma agressividade controlada na cor de
[cada pétala.

É isto, então, o que se chama "primavera"?


UM DIA DE FÚRIA OU DESEJO DE MATAR 1535 (Vlado Lima)

Bradesco
3 horas e 19 minutos p.m.
243 metros de carne humana suada numa quinta
[-feira santa
uma récua de caixas em marcha lenta
e um olho de peixe temperamental

PRÓXIMOOO!

tô só o pó
no bagaço
osso só
tô no talo da rabiola
tô na tanga atolada
no vácuo do corvo
entre o infarto
e o never more
tô no limite
na pressão
além do alerta laranja
tô no vermelho
tô azul-azedo
tô na regressiva
3
2
1

PRÓXIMOOO!

penso na barriguinha cheia da minha velha Luger

PRÓXIMOOO!

hoje eu poderia invadir uma escola primária do
[kentucky
e fuzilar meia dúzia de pequenos republicanos

PRÓXIMOOO!

hoje eu poderia Jogar um 747 contra a Esplanada dos
[Ministérios
dinamitar o Louvre
ou explodir a embaixada argentina na Moldávia

PRÓXIMOOO!

hoje eu poderia correr o Serengueti fantasiado
[de gnu
gritar Palmeiras no meio da Fiel
ou dar um tiro no cu de um folgado qualquer

PRÓXIMOOO!

hoje eu seria Gaetano Bresci
Carlos Ramires
Chico Picadinho
hoje eu seria Willian Foster

(...)

Bradesco
4 horas e 30 minutos p.m.
plano de saúde? em dia
tv a cabo? em dia
27ª prestação do carro? em dia
aluguel? em dia
escola das crianças? em dia
não matei ninguém
não soquei ninguém
não empalei ninguém
não detoenei nada
e o segurança simpático próximo a porta giratória assobia um samba do Zeca

PRÓXIMOOO!

Vou botar meu coração-cuzão em banho-maria
e levar meus leviatãs pra queimar as varizes no
[litoral

PRÓXIMOOO!

eu seria um Charles Bronson se não fossem os
[feriados prolongados


ENCOURAÇADO (Dom Ramon)

"Anelo, couraçado, ao destruir de ondas.
Anelo, encouraçado, reluzir, das chamas... (...)"

O mar já não é como outrora, o tarantar continuado dos charcos, apedrejados, clama velho sentido de alerta. Duas, são as mãos do Destino; relembra meu bramir interior, e com uma a destruição procurada, a destra, e com o sinistro a misericórdia.

Agarra-me sinistro!

Moço, jovem, fresco de sonhos, calejado pelos monstros marinhos, pelos monstros, nos homens, envelhecido, constrangido, vertendo em tenebroso tempo, coragem de vida, ou de morte. Vertendo pelos ventos, pelas ondas, nas rochas. Erguida muralha de pedra, resiste ao mar, erguida e por ela, em frente, sem temor ou terror.

" (...) Suprimido de raiva, resistência, bravura.
Entre as pedras do rochedo, de qualquer praia".


ENSAIO PARA UM VOO CEGO (Celso Mendes)

Estanca esta minha reza antes que eu confesse
meus dissimulados tempos de angústia incrustada,
forjada secretamente com palavras mudas entre risos
[breves,
olhares distantes e meias verdades.

O amargo que exalo da língua é a minha defesa
e a lança que aponto em teu peito me fere na alma.

Não deixa que eu diga o que sinto,
que eu sinta o que penso,
que eu pense que sei já saber ser vodu de
[mim mesmo.

Pois hoje eu queria fazer um poema cortante,
que sangre, que vaze dos olhos, que verta o veneno.
Por isso preparo um altar para o sacrifício:
que o doce lirismo se queime na verve maldita
e o olho dos ventos me arranque essa pele de santo.

Devolva-me cada delírio e meus sonhos alados,
vomita esses meus pedaços que já mastigaste,
retira de minhas entranhas as tuas matizes

e impeça este meu ensaio de um voo ao inferno.


ERRO (Betty Vidigal)

Algum erro foi cometido
que nos tornou perdidamente humanos.
Impossível resistir.
Obedecemos às leis que regem a vida dos colhidos
[antes
e sofremos as consequências disto resultantes:
jamais seremos livres.

O peso de ser vivo sempre nos oprime;
os companheiros um a um nos abandonam.

Sem dor.

Sem remissão.

(Quem nos fez humanos não tinha coração.)


ESTOU DE SACO CHEIO... (Flavio Dario Pettinichi)

Estou de saco cheio de carne podre nas prateleiras
Neste mercado da vida tem produtos perecendo
E não há inspetor suficiente para controlar o caos
A putrefação tomou conta da humana poesia

Tenho pena dos feridos da gangrena do ódio
Tenho lástima dos que vão à missa sem pecados
Não tenho compaixão pelos infames que amam só
[de pau duro
Cuspo na cara do poema que fede a palavras vazias

Acabou senhores! O Poeta está sujo e imundo
[como todos.
A pestilência tomou conta das saudades e no seu lugar ficou um copo quebrado com gotas e sangue
Agora é o tempo das desertas miradas e nas miragens só aparecem anjos mutilados de amor
Acabou senhores! A poesia está corrompida pelas almas obsessas e vomita cacos de vidro no jardim da suas casas, coloquem seus coturnos!


O GALO (ükma)
O canto do galo dá vida à navalha,
gargarejo com espinho
que invoca o diabo na madrugada sem fio.

"Empurrar o mal para dentro de uma garganta
[rasgada"

E com a ponta afiada, desenho em meu corpo
a lembrança aflita de um bicho cego de crista
que molestou sem dó uma alma bendita
com sua toada de morte.


GOSTEI DELE... (Lúia Gönczy)

"gostei dele; tinha cara de prego - bati firme,
[furei parede
- agora é ele que me atravessa"


JAGUNÇA (Flá Perez)

Se quer mesmo saber :
nunca desisto.

Rasgo bandeiras,
pego em navalha
-ela sabe artéria e veia -

e se for preciso,
abro o cabra a golpes de peixeira.

Feiticeiro abençoou,
então
não adianta levar mais gente,
que a gilete a faca a forra
sabem destreza
sabem certeiras
vão na certeza

- não há defesa que aguente -

Posso ser premeditada
ou num impulso
eletromagnético,
puxar o pino da granada
quando ele estiver dormindo
(sem escudo)
e não poderá fazer nada.


LAPIDAÇÃO (Ruth Cassab Brólio)

Sonho de uma noite de verão,
Ou pesadelo.
O tempo é o ano mil,
Cena, Ibiza, Espanha.

Havia um clima de festa.
Trajavas toga romana,
Bem recostado à montanha.

Eu era nua em pêlo,
Fugida de alguma floresta.
Afogada, imersa ao chão.

Na tarde luminosa e fria.
Ou seria
Em versos, o inverso?
De certo, tudo ao contrário?
Quando as cenas retornam,
Independem do cenário.

Flash luminoso à testa,
Em meio ao sangue que medra.
Melhor, bem melhor assim.

A ser o algoz
Ou a pedra.


LIXO TÓXICO (Flá Perez)

Sangro mais que pelos pulsos,
olhos, boca.
Sangro idéias obscuras.

Desato o torniquete
- não houve tempo pra sutura -

do corte escorrem
algoritmos, radioatividade
manias,

palavras desconexas,
puzzles, poesias.

Cheia de ódio,
ainda assim gozo

atônita,
olho o papel,
as linhas.

E amasso vestígios,
varro-te,
atômica ventania!


MANDÍBULA(Flá Perez)

Não corta
com faca
a fruta.

Tira
a casca
com os dentes

morde
e chupa.

Mandíbula forte!
Mordida cruzada!

Trinca
conceitos.

Destrincha
osso, pele,
nervos.

Racha
Restaurações
e defeitos.

Rasga
o verbo.


MINHA VOZ (Rosa Cardoso)

faço versos
nessa língua estranha
que você adivinha

falo em desalento
em desencanto
com palavras sonoras

o som devora
as tristezas que embalo
e você ignora


A MUSA MUDA (Allan Vidigal)

Às vezes, a musa
- por pura pirraça -
não nos dá o ar da graça,
nos ignora, reclusa,
e desaparece.

E não há o que a faça
- súplica, prece,
berro, ameça -
mudar de conduta:
só vem essa vaca,
só fala essa puta,
se bem lhe apetece.


NÃO TEM NOME (Rosa Cardoso)

o céu dispara seus dardos
setas azuis lancinantes
fiapos de sombra rastejam medos

cismo anjos
livros sedados
fogueiras e selos
sexo e mentiras

tudo cai

enredadas pelos cantos as meadas desfiam
longos rosários de verdades entrecortadas
os anjos segredam revelações
em meus olhos moucos

queria que contassem dos desenhos
das tramas traçadas
dos ardis pintados na areia

mas eles sussurram sem parar
cegando teus encantos

queria que ouvissem
essas notas dissonantes e embaraçadas
sopradas no avesso da trama

distraída pela algaravia de cores
despedaço teu olhar surdo
espargindo cacos
vitríolos em que refulgem incêndios


NOITE INSONE (Nilson Moreno)
Em sua última noite insone
você cantou, dançou, bebeu?
Passou frio e passou fome
soube que o filho era seu?
Foi subida inspiração
fogo mandado do céu?

Em sua última noite insone
o que foi que aconteceu?

Foi repetindo a rotina
foi naquela sexta-feira?
Foi delirando sozinha
foi curando a bebedeira?
Foi brigando com a vizinha
foi vestida de enfermeira?

Em sua última noite insone
o que lhe acontecera?

Foi dia de casamento
o romance te prendia?
Comemorou o espetáculo
foi doença na família?
Desmoronou o barraco
engravidaram sua filha?

Em sua última noite insone
o que é que acontecia?


OBSESSÃO EM GOTAS (Vlado Lima)

jantou
fumou um cigarro
e escovou os dentes
depois afiou a faca de churrasco
esquartejou a esposa
e jogou os pedaços na caixa-d'água

de madrugada
sentou-se junto a pia
abriu uma fresta na torneira
e contou as gotas de carne
bem me quer!
mal me quer!
bem me quer!
mal me quer!
bem me quer!
(...)


ORANGOTANGO (Lúcia Gönczy)

ser macho não é bater no peito, coçar o saco,
casca grossa, gabar-se das comidas
macho é mais que isso:
consciência da fêmea; respeito.
sensível, abrir os braços, estreitar laços
entender a língua
ser macho é quase despacho; encruzilhada
galinha preta, farofa, cachaça
e uma pitadinha de TPM antes e
depois da oferenda.
AÍ SIM, macho que é macho
rola o tacho;
capaz , tolerante, amigo
fiel? nem tanto! cada qual tem seu umbigo
e ninguém tá pedindo o impossível...
ser macho, afinal, é tipo João Coragem:
morre na última vírgula
e não tá nem aí pra reticências...
módulo? decididamente não faz seu tipo.
macho não se apega em detalhes,
estrias, celulites ou vertentes...
não espalha nem desdenha
afinal, macho é comum, barato.
ser homem de verdade,
é para poucos.


PÁSSARO (Allan Vidigal)

De olhos vazados, a musa
debate-se, urra - cativa.
Destroça seu rosto com as unhas.

O grito da musa no escuro:
lamento de dor e loucura.

(a musa, canário em clausura)


PEQUENO PRINCÍPIO (Nilson Moreno)
Sou presa então daquilo que cativo
devendo preservar mesma postura
que agrade a tal cativa criatura?
Fui pregado na cruz de um adjetivo!

É dano que não planto e não cultivo
nem vou representar caricatura.
Estranho, o ser cativo é que censura
e o cara que cativa é que é cativo?

Não sigo nem assino o quanto digo
nem convidei ninguém: "venha, me siga!"
eu cuido muito mal do meu umbigo

pertenço a nenhum clube, classe ou liga
Às vezes nem eu mesmo vou comigo
Eu falo aqui sozinho e compro briga.


QUE SEJA? (Lena Ferreira)

Um soco preciso
na boca da alma e
...silêncio.

Que morra o sentimento
antes mesmo de nascer...

Que seja assim
...ou não.
Não sei, bem..

Um grito abafado
sufoca o peito que quer explodir
...não pode.

Não hoje
Ontem talvez...
Amanhã quem sabe...
...hoje não

Lágrimas desenham um verso
no papel borrado de tinta encarnada


Que seja assim

...melhor pra você

.
...e pra mim?


SACRIFÍCIOS (Ruy Villani)

É preciso sepultar os nossos mortos
Sejam eles seres, coisas, fatos ou idéias
É preciso que se vão todos os idos
Para abrir lugar a novas esperanças

É preciso criar novas alianças
Que renovem os grilhões de nossos membros
Que exigem ser atados, não tem jeito,
Mas o peito sempre implora novos ares

É preciso renovar nossos altares
E reavivar a morte em sacrifício
Foi assim e sempre foi, desde o início
Algo morre para dar lugar à vida.

Se hoje poupa-se o cordeiro, a rês infante
Nada há de novo no instante
Em que se verte o sangue em oferenda a divindades
Porque nada se renova das vontades

Extirpamos sempre os corações mais puros
E os ofertamos como alma ao demônio
Ou covarde temor a deuses toscos
Sempre na intenção de alguma sorte

Reconheçamos a morte. O ritual de passagem
Temos dela a imagem de início
Como se pular do precipício
Fosse apenas o ensaio de um vôo.

Me enjôo com essas imagens vulgares
Busco a vida enquanto vida em lugares
Tão mais simples, despojados de oferendas
E, ainda assim, sigo esperando outras prendas.


SEM PANDEIRO OU BANDONEON (José Hamilton da Costa Brito)

A porta se fechou atrás de mim...
Não, não é letra de tango.
Nem sei fazer milonga...nem onda.
Apesar que o tema...pode até ser.
Estas merdas do viver e do perder.
Assim como o samba tem os saberes do céu
O tango é mais batuta para passar, creia,
As agruras de uma vida filha da puta
Dos fracos que morrem no dia-a-dia.
Assim como eu morro a cada instante
Tendo como fundo musical...o silêncio.
Sem pandeiro ou bandoneon...
Isso ,porque você, em uma tarde de outono
Saiu na alameda, pisando as flores caídas
Foi viver a sua vida de perdida.
Passei os verões e os invernos
Conhecendo no corpo,os infernos
E nem a natureza apiedou-se de mim.
E agora, sem ser nada, pois" eu já era"
Peço a Deus que me ajude, me ampare
E me dê, de novo, uma feliz primavera
E de sobra, uma loirinha, assim-assim.
Mais assssiiiiimmm do que assim


TATUAGENS DE PAPEL (Rosa Cardoso)

você chama ,
nesse idioma
ritmado e ladino.

Tirano

entoa loas à toa
em que me aferro

cedo

acredito nesse drama
as palavras desmaiam
a língua desliza

lasciva

penso em Odisseu
traço planos
desenho mapas de fuga

amarro teus pulsos
tapo os ouvidos
desdigo tuas tramas

enquanto pasmas
leio ideogramas
bordo na pele

tatuagens de papel


TORTA (Flá Perez)

Cortar
a artéria aorta

entrar
pela veia porta

beber
sangue sujo
da jugular

Assim mostra
a que veio
a vampira

e na veia
cava
uma cova
ao luar.


TRATO (Cesar Veneziani)

Te amo tanto,
xxxé fato!
E o encanto
é o retrato
do momento.
No entanto
o riso,
xxxde siso a siso,
é ciclo irreversível
que leva,
xxxindelével,
à treva.

Te amo tanto,
xxxé fato,
portanto
façamos um trato:
paramos no meio
antes do "Te odeio"!


VAMOS CASTRAR O MACHISTA!(Igor Buys)
Poema escrito em atenção ao
mote"machão inveterado" ofe-
oferecido pela poetisa Cleusa
Sotsab através da NOP - Nova
Ordem da Poesia.

Vejam: é um machão inveterado!
E de esquerda: sim, é dos pesados!
Antes que o mal se alastre e dê frutos
- mais que depressa, irmãos! -
é de mister esquartejá-lo; suas vísceras
dá-las-emos aos cães e às bichas emos que o pastem!

Abram o Malleus Maleficarum e algum disco de
[platina.
Atentem ao que dizem as Escrituras e as Ranhuras...
Está claro: ainda que ele assim não se defina,
ainda que despreze a essência do chauvinismo-
-catolicista e fascista que, tanto quanto nós,
[o odeia;
ainda assim - de uma certa forma - é um machista!
E o é perante a nossa Sacrossanta Compreensão do-cós-
-e-da-calça e da métrica assimétrica apolítica
[de centro!

Sim: é um machista. Um comedor fanfarrão!
[E doce!...
Chacinemo-lo já! Chacinemo-lo, irmãos, que a
[sua seita,
entre todas as mais brutais e exóticas hoje
[aceitas,
complacentemente, ainda não se afina - com a nossa!
Então, em os santos sagrados nomes de Madame Satã
[e Tio Sam:
morte às diferenças! Aplainem o diferente! Pena de
[corte - já!

Suas partes dividiremos conforme o princípio
[da força.
As lésbicas e os gothic vampires vão ficar com o
[seu sangue.
Minha filha quer sua bunda de louça - bronzeada
[em Búzios;
sob sua túnica lançaremos rifas. Quem dá mais pelo
[umbigo?

Que empáfia a desse Buys: as mulheres que ele
[namora
minhas netas podem ser, e algumas até capa de
[revista
- como ele se atreve: ora, em plena idade do
[lobo!...

Nova Gomorra em peso quer espremer o seu fígado
impregnado de Martini e Dimple 15! E lhe injetar
[cocaína!
Da pura! Da boa!... Mas é que viado pode, machista:
[jamé!

Pode tomar pico na veia e pode assaltar botequim,
mas viciado em mulher... Pô: só se for sexaholic!
- E sacramentado nos Esteites! Aí tudo bem, se
[entende.
Claro: pra cima de moá?...Vamos castrar o machista!

Sua coleção de fetiches vamos incinerá-la e a seus
[revólveres idem
que nada disso é coisa que se permita no mundo-pós
[de Bahá-Barac!

Ah, vamos castrar o machista! O tauromaquista, o
[prestidigitador!
Esse que dá tiros e socos, esse que acredita no
[Homem! E dança!
E canta com a voz pequenina, imitando o Gilberto...
[Laraiá!

Vamos malhar o machista! Enrabar seu cadáver,
[clonar seus poemas!
Vamos, todos juntos, guilhotinar o seu pênis,
[romper seu períneo!
E na próxima Marcha da Família Com Deus Pela
[Liberdade
- em glória - crucificar seus testículos diante do
[Capitólio!