P:P-P

Palavra-Porrada é um ezine mensal com textos que só têm uma coisa
em comum: teor zero de açúcar.

Os textos-porradas não têm que ser agressivos. Não têm que ser
violentos. Não têm que ser grosseiros (aqui tem até poema de amor,
mas sem rima de "coração" com "paixão").

A participação é livre e recebemos material até o último domingo
do mês anterior a cada edição. As instruções para envio estão na
guia "Dê Porrada!". Claro que não dá pra publicar tudo o que
chega. Mas a gente lê tudo o que recebe e escolhe cerca de 30
de cada vez.


Este XIV Round traz André de Castro, Benê Dito Deíta, Betty Vidigal, Carlos Eduardo Ferreira de Oliveira, Cesar Veneziani, Dani.'. Maiolo, Diogo Mizael, Dom Ramon, Flá Perez, Giovani Iemini, Isadora Krieger, Izacyl Guimarães Ferreira, Jorge Mendes, José Antonio Cavalcanti, Jurema Aprile, Leo Lobos, Ricardo Ruiz, Romério Rômulo Valadares, Solange Mazzeto e Vlado Lima, além dos responsáveis pela bagunça, Lúcia Gönczy e Allan Vidigal.


Fomos assunto do programa Prosa & Verso da Radio Senado. Dá pra
baixar aqui.

13 de jan. de 2011

X Round

ASSUSTEI-TE? (Lena Ferreira)

Por que o espanto?
Assustei-te por querer
um gozo inteiro
em plena madrugada
na minguante fase lua?

Entendo...

Mal acostumei-te
a arder somente
em lua cheia
conveniente
mente

Basta!

Quero-me inteira
intensa, sem amarras
socialmente inaceitável

Quero a sensação
de completude
hoje e sempre
no agora

Assustei-te?
Bem supunha

Sugiro
que tateie-me
melhor...

...ou melhor,
vá embora!


ATENUANTE (Flá Perez)

À noite minha cama
se enche de demônios,
e o choro de crianças não nascidas.

São césares, otelos, minotauros,
creontes, menelaus, jasões e midas.

Chegam de costas, como a saírem,
carregando as almas tortas
mancando atrás dos corpos.

São íncubos furiosos e antigos
de olhos másculos, músculos,
espartanos,
falos maiúsculos

e vem brandindo os rabos
e os remorsos

pra ter alento
nessa boca tântrica
e na doçura soberana
do meu dorso.

tenho o equilíbrio das forças
entre as cheetas
e os antílopes,
papoulas, carma dos lobos,
entre meus dedos de morgana

tenho o olhar dos destinados
às grandes revelações
e martírios
contrastando com a cara
de sacana

e a pele santeria
manuscrita em pena ígnea
que dissolve cianetos,
aleijões, incestos,

e faz das faltas deles
meros palimpsestos.

Quando amanheçe,
e peço aos céus,
que acabe logo com isso...

bem, eles se vão,
como a chegar,
quando repito,
como se fora em prece:

"ao menos uma vez
me mandem cristo".


CACHOEIRA (Rodrigo Domit)

Do alto do precipício

atirou-se, impulsiva

foi a gota d'água


CINZELADA (Rosa Cardoso)


ergui essa escultura
cinzelada pelo medo
lavrada pelo grito

sem rumo, vazio


tua voz entalha essas falhas
santos escapam pelas beiras
ouvidos moucos me traem
tua pele rouca rasga a noite

navegamos perdidas
estátuas de sal
apuradas em pele sangue
e avaria


DECISÕES COMPLEXAS (Ruy Villani)

Infantes, o somos
Embora aspires consoantes
Harmônicos mantras de outras paragens
Somos iguais.

Vogais

Apenas sonidos e abertos
Estamos por perto
E por quase nada
Somos não mais

Distância
A tua escolhida inconstância
De somas e somas que nunca são mais

Não paz

Apenas delírio
De quem já passou da penúltima gota

És rota
Desfeita em retalhos
Feita em bugalhos
Que sempre me dizem por quais

Que seja, não por que eu queira
Mas por falta de beira,

Jamais.

E jamais, sei por intuitivo,
Nunca é algo definitivo.


DISPENSO AS MÁS LÍNGUAS (Lúcia Gönczy)

Dispenso as más línguas
bocas sujas de mel cheirando
a fel
Sarjetas sob disfarce de bons modos
Dinamites implodidas...
Detesto o mal me quer disfarçado
de bom moço
Quero, sim, o verbo ácido e ávido
A palavra que fere a verdade;
Ao invés de trocadilhos baratos
quero a vida, exatamente,
como
ela é:
sem censura...
sem cortes!


É PRA SER DESENHADO? ENTÃO TÁ! (Dani Maiolo)

Dias de desgraças,
não provém de fúteis ameaças.
Dias que são noites,
das suas eternas tentativas de açoites.

Muito bem vos digo,
daquele Verbo que você profere.
Nada do que diz mais me fere.
Eu agora faço o dito.
E repito em tom maldito:

JÁ MORRI, DESGRAÇA AMBULANTE!
RETORNEI INCONSTANTE!

Deu pra perceber agora?
Voltei mais nefasta que outrora.
Onde antes, via uma luz de credulidade;
Hoje, não dou trela a nenhuma fatalidade.
Vivo de ódio, da vontade de vingança.
Vivo do que você acha mera redundância.

Não perdi minha delicadeza.
Mas só a entrego em destreza,
à quem me vem de bom grado;
Assine o tratado!

Não conto mais com as historinhas de criança.
Desconfio de tudo e sinto sua discrepância.
Se atratar comigo, veja de não errar no ponto.
Meu sorriso é caro e não faço desconto.

Sou tudo que quiser,
mas esteja atento ao que me fizer...

Não penso duas vezes em te dar o que merece.
Junte agora as mãos, e comece a sua prece.
Pois o amanhã nunca é tardante.
Se comigo for tratante, depois, não se espante!

É apenas um aviso.
Eu não mais deslizo.

Voltei do inferno, onde aprendi.
Numa oração de indiferença, eu cresci.
Amadureci...
Endureci...
Enegreci...

Não quero redenção.
Não espero a luz da ação.
Do contrário, ou não ligo, mas penso e guardo.
Espero-te na encruzilhada, retribuir este fardo.


ESCALPO (Dom Ramon)

Toma; baila que teu muro é o fogo.
Vibra; as estrelas cobram teu rosto. Oculto.

Toma tua liberdade, furibundo, toma que teu muro é o fundo.
Larga, larga que a escuridão recobre os olhos. Daquilo que em tudo é acabado.

Toma, vã ilusão, toma, ínfimo de tudo, toma do cálice - Cale-se - amargo:

Finito é o mundo, finitas são todas as combinações, tudo que poderia ser: É. Plenamente. Plenamente em teus muros, plenamente rebelde, plenamente escravo.

Toma, indígena, come teu coração vontade, avança contra o fogo da pólvora e morte, agarra nos dentes, sangrando na carne; Ele é o mundo/ Você é o mundo.


ESCONJURO (Rosa Cardoso)
me distraio e lá vem teu nome
feito navio errante
ancorando sem pejo

murmura festins bentos
pelo céu da boca

um segundo basta
e já te vejo

os cabelos ramalhando
no meio da sala

a carne posta sobre a mesa
esconjuro teu fantasma nu
fecho as janelas e te beijo


ESTRADA NUBLADA (Rodrigo Domit)

Cada mão estendida
puxava-o para a desgraça

Nestas curvas traiçoeiras
cada luz é uma ameaça


EVA, LILITH E A SERPENTE (Rosa Cardoso)

eva sussurrava entredentes
medos e pecados deslindados
nos vastos
entre tantos devastados

a serpente num canto sibilava

deslizando a língua bífida
na pele branca e ávida
o vento lilith sopra velha alquimia
esquerda eu adivinho

meu sátiro sorria


ÊXODOS (RUY VILLANI)

Na minha eterna terra prometida
O que conheci era a ida
Nunca a chegada.

O meu lugar sempre foi a estrada
E não o destino.
Só assim atino com caminho
Que é sempre caminho
E nunca pousada

Na minha terra prometida
Não haveria virgens vestais
E nem donzelas que tais,
Posto que estas são sonhos.

No meu éden, haverá mulher
Que faça de mim, não o que quer,
Mas o que sabe.

No meu nirvana haverá, eu sei,
Uma realizada vontade
De paz plantada, regada
E colhida.

No meu descanso haverá uma ida
Com destino final
Qual a senda pretendida.

E finda a fase do caminhar
Lar. Por fim, lar.

Onde se pousa e repousa
Até ao inexplicável lugar.


FLORES DE BACO (Celso Mendes)


mostra-me o convexo de tua mente doentia
espreitando o supremo sumo do corte por onde vazam
desejos
códigos de morte
e vida latente aprisionada em masmorras

abdica da faca e dessa pétala venenosa
deixa escorregar esta frase entre teus dentes cerrados
morde estas palavras vis e cuspa teu fel
[adocicado com sangue e vinho
sobre a terra que cavaste

o raso da cova é onde se acomodam as emoções mais baratas
em cima das quais nasceriam flores de Baco

mas a natureza é simples demais para entender
por que as flores se importariam?


HAICAI DE BOTAS (Igor Buys)

Homem de preto.
Homem de azul.
Homem de oliva.

De vermelho, a poça.
Botas.


HORIZONTE (Ruth Cassab Brólio)

A urbe ruge pressa, insanidade.
Desconexa, concreta pólis ergue o burgo em edifício.
Urde a não cidade, a cidadela.

No sem fim, vazia,
a fatia do ser espreita,
tateia, procura, urge.

Dispersa,
espera uma porta do olhar,
e vadia, foge pela janela.

Escapole.


INTOLERÂNCIA (Rodrigo Domit)

A marcha era pela paz

mas o protesto ficou violento

queimaram os pneus

com gente dentro


MANHÃ (Ruth Cassab Brólio)


pro vôo livre de um verso

escolho o céu laranja da aquarela
tons até o amarelo-gema
ovo estrelado
a gema mole vaza onde molho o miolo do pão quente
que você traz da padaria do lado

escolho o aroma
som-cheiro ecoa pelos quantos cantos
enquanto passo o café em coador de pano

escolho a fOrma
xxxxxxxxxxxxxObvia
xxxxxxxxxxxxxxbOla redunda
xxxxxxxxxxxxxxxrOla e pára
no vermelho da linha fina de rodapé da folha do caderno

escolho o fundo da pincelada
branco prato-papel

escolho a janela
ar novo fresco pela fresta
festa pra mil talheres raios ouro horizontais dispostos
no lugar-comum
cotidiano
a mesa da copa


MEDO DE SER FELIZ (Igor Buys)

Vence esse teu medo de ser feliz.
Deixa a natureza nua pensar por ti,
ouve a voz dessa tua pele de leite
e deita a tua cabeça no meu peito.

Não te prendas ao fato d'eu largar.
Se largo, ora: primeiro agarro.
Sê positiva, mulher... Madura.

Quem vai rasgar a tua blusa.
Quem vai bloquear o teu tapa
e beber a palma da tua mão.
Quem vai te deitar na parede.
Quem se não eu vai te fazer
rir e sorrir, bebendo lágrimas.

Só eu vou-me sentar no chão
para auscultar teus esperneios,
decifrando esses olhos de menina.
É sério: só o ficante e o viado
são amigos da mulher: escolhe.

Ninguém assistiu ao formidável
enterro da tua última quimera,
somente a ingratidão, essa pantera.*
Pois se a alguém ainda causa pena
a tua chaga, arranca essa roupinha
que te esconde; mostra esses seios
pontiagudos, essa púbis de louça,
morde e suga o sangue da vida!
Vem, amor, espero-te, há tanto;
vem cortar as minhas costas com
essas unhas, que a chama é breve
e a cinza do esquecimento, eterna!


MEMÓRIA DE MEU CORPO (Solange Mazetto)

bailam vampiros
demônios crescem

na noite sinto-me bela
na treva vejo
o escaravelho

dogma
do perfume abandonado


MINIMALISMO (Rodrigo Domit)

Papelão sobre tela
Jornal sobre calçada

Muito pouco sobre quase nada
A dura arte de sobreviver


PARA NÃO MAIS BEIJAR (Allan Vidigal)

Nem línguas, nem lábios, nem bocas,
mas vermes lentos,
lesmas quentes:
acasalamento
de moluscos sem concha
entre os dentes.


PERSONA (Erika Hirs)

Cansa-me atuar, não que não te queira
(e te quero
língua fome de terra)

mas a cabeça coroou a torre
e vivo no camarim suspenso em que olhos e ouvidos são janelas
e telescópios:
observatório panorâmico
de onde degusto a distância e as pessoas como estrelas do nunca,
constelações inofensivas e comodamente zodiacais.

Sei que corto a carne quando rasgo teu figurino
e meu faro inato e equivocado para o não-inato te perfura
quando confundo com maquiagem o pálido da tua derme.

É que não gosto de você porque você não é todo meu,
e te exijo real sob os meandros da carne:
não terra mas fogo e magma,
entranha profunda da pele.

... despir-te de teus escombros, que te vestem como máscaras;
expôr-te, trazer-te nu a ti mesmo e contar:
é isso que eu amo,
teu cerne.


ROMANESCO (Rosa Cardoso)
ontem tua imagem me distraiu
assombrava os porta-retratos
fotografias de beijos perdidos

não era a boca
nem teu beijo
não me lembro do gosto
nem da cor que têm

era a idéia do sorriso
bendito sorriso
vagando pelo meu quarto
quicando pelos cantos
feito ídolo errante ou errado
não sei bem

comprei fita
colei os cacos
dias e dias

prendi tua alma
preguei na parede
pra te esquecer

vejo o beijo guardado
minha boca se esgarça
vejo a foto e te destruo
a foto desfolha graça
e eu rio

distraidamente

destroço teu sorriso
suavemente aceito tua proposta
e desfaço teu retrato
iconoclasta e romanesco


SINCERIDADE (Cesar Veneziani)

- Amor, fiquei tão feliz com a flor que você me deu que fiz esse poema. Dá uma lida!
Com cara de incomodado pela presença do amigo na cena, ele começa a ler:

"Me deste uma flor.
Foi prova de amor!
E o meu coração,
Por pura emoção,
Está a cantar:
Que bom que é te amar!"

- Então, o que achou, amor? - Pergunta ansiosa.
- Bem, ao menos parece que você melhorou na métrica e no ritmo... - Disse ele tentando ser brando.
- Tá, e o que mais?
- Não misturou segunda com terceira pessoa...
- Tá, só isso?
- Só.
- Como só? Não tá lindo? É a pura expressão dos meus mais sinceros e profundos sentimentos...
- Bem, pela expressão dos seus mais sinceros e profundos sentimentos eu, como seu namorado, fico muito feliz, mas pelo poema o que tenho a dizer é: tá muito ruim, com rimas paupérrimas e com jeito de desabafo de adolescente!
- Seu insensível! - Gritou e, em atitude agressiva, tomou a folha com o poema da mão do amado e se foi a passo firme.
- Cara, precisava ser tão sincero assim? - Disse-lhe o amigo.
- Se ela não fosse tão gostosa, já teria lhe dado um pé na bunda faz tempo. É que ela pensa que é poeta. Haja saco!!!


SOBREVIVENDO (Rodrigo Domit)

Sempre buscou subir na vida

dos outros

Para ver se melhorava a própria


TARAS (Allan Vidigal)

Inventa-me, amor, uma tara sem par.
Desvenda o universo das parafilias.
Revira papiros, grimórios, estelas,
revela nos ritos e antigos mistérios
fetiches quaisquer que a nós dois enfeiticem
(o amor, meu amor, quase a tudo resiste,
mas não à armadilha fatal da mesmice).


TEMPESTADE (Rodrigo Domit)

A janela bate
com força

e a porta geme
contida

Não há mais clima


VERSOS INÚTEIS (Ruy Villani)

Inegáveis meus versos profundos
Os imundos, guardo para mim
Os sem fim e os prolixos
Deixo a se esvaírem
Como histórias sem fim.

Reprováveis meus versos tantos
Meus cantos de harmonias idas
Já não mais blues, já não tão simples
E tão inúteis como as tais.

Descartáveis meus versos novos
Pois que são probos e inocentes
Incineráveis são as palavras quentes
E crentes de serem ouvidas.

Imoláveis as sugestões
De vida que há nesses versos
Pois que sempre serão dispersos
E jamais serão canções.


ZÉFIRO (Davino Ribeiro de Sena)

Não guardo rancor à brisa
por me haver traído
e aceito - como se ainda
vivesses - o dever de respirar.

Mas não me conformo de haver
a ti sobrevivido. De respirar
a vida, o ar que não respiras.
De saber teus os meus pulmões.

Lamento que teu conselho
tenha morrido no quintal
entre o discurso de amigo
e o suspiro paternal.


ZINCO (Davino Ribeiro de Sena)

O raio desceu o braço
mas não disse nada.
As nuvens se aglomeravam
na entrada do teatro.

Sob o zinco, a esposa
esperava uma resposta.
Mas o céu era implacável
com trovões monossilábicos.

Nem uma gota de água
mereceu cair nas telhas.
Apesar do calor, o homem
não quis voltar para casa.